RACISMO DIGITAL E A PERPETUAÇÃO DA COLONIALIDADE
Uma Análise do Fenômeno e Suas Manifestações
As redes sociais contemporâneas têm-se tornado palcos privilegiados para a manifestação de formas renovadas de racismo, particularmente dirigidas contra África e outras regiões do Sul Global. Este fenômeno manifesta-se em diferentes modalidades: desde comentários explicitamente depreciativos que classificam continentes inteiros como "esgoto da terra", até expressões aparentemente mais subtis que celebram o "privilégio" de nascer em determinadas regiões, criando implicitamente hierarquias geográficas e raciais.
O caso paradigmático dos comentários sobre o consumo de água em zonas rurais africanas — onde internautas zombam do sofrimento humano com frases como "Poderíamos ter nascido na África e estarmos bebendo água assim..." — ilustra perfeitamente como a desumanização se disfarça de entretenimento. Simultaneamente, publicações sobre "chances de nascer em cada continente em porcentagem" transformam a gratidão em celebração hierárquica, ancorando o imaginário colonial que posiciona o Ocidente no topo e reduz o resto à condição de "sorte inferior".
A Estrutura Ideológica do Racismo Digital
Este racismo digital não é mera manifestação de ignorância individual, mas expressão sistemática de uma ideologia colonial que perdura há mais de 500 anos. A lógica subjacente opera através da desumanização técnica, onde o uso de percentagens e estatísticas confere uma aparência "científica" à violência simbólica, naturalizando hierarquias raciais sob o manto da objectividade.
Muito se tenta combater este fenómeno na interacção social entre os humanos, mas parecem infrutiferos os esforços nesse sentido, uma vez que quanto mais correntes opostas surgem com renovados argumentos, mais subsistem os ideias das disparidades e desigualdades entre as vítimas. Gabriel pensador, rapper brasileiro, já dizia que racismo é burrice. Ainda hoje em dia há vestígios tónicos acenando o contrário.
Uns aprendem nas suas famílias desde cedo, na infância que sua pigmentação representa algum privilégio sobre as restantes e outros aprendem vendo dos demais como tratam outras raças. Ainda que os brancos, por exemplo mostrem recuar, a maioria dos políticos africanos, principalmente dos partidos libertadores escusam-se a inovação da ideia que o Norte Global é superior(...)
O no meio de tanta proliferação das teorias de conspiração hoje ideia, descutir a existência desse fenómeno - racismo, é retulado como sendo parte da distração à atenção dos outros assuntos que mais importam. Assim, perdem força os movimentos que mantêm a chama da luta contra os actos racistas, à favor da ignorância e conformismo em pensamentos que geram uma atitude estranhamente pacífica aos factos que são normalizados, ainda que errados.
A estrutura deste pensamento funciona em três níveis interconectados:
1. Animalização e Inferiorização: O "outro" não-ocidental é sistematicamente reduzido a uma condição sub-humana, digno apenas de piedade ou escárnio, nunca de dignidade. Esta operação simbólica permite que o sofrimento humano seja tratado como piada e que desafios estruturais complexos sejam reduzidos a memes.
2. Naturalização da Desigualdade: As dificuldades enfrentadas por regiões do Sul Global são apresentadas como consequência de uma suposta "essência" inferior, ocultando completamente os processos históricos de pilhagem, exploração colonial, interferência estrangeira e má governação patrocinada por potências que lucram com o caos. O pior ainda é a aceitação dos dirigentes, desalinhados com seus povos.
3. Inversão da Causalidade: Os territórios que fornecem os recursos que alimentam as tecnologias, mercados e luxo do "primeiro mundo" — como o cobalto do Congo, o cacau da Costa do Marfim, as plantações indianas ou o gás de Moçambique — são paradoxalmente classificados como "inferiores" pelos mesmos que se beneficiam da sua exploração.
As Consequências Reais do Racismo Online
Este tipo de discurso tem consequências concretas que transcendem o espaço digital. Estudos sobre racismo no futebol demonstram como o racismo online tem crescido exponencialmente, autorizando sectores da sociedade a insultar jogadores negros de forma desumana. A normalização destes discursos nas redes sociais cria um ambiente onde a violência racial se torna socialmente aceitável.
A SOS Racismo já documentou como estes padrões recorrem sistematicamente "a uma versão caricatural... reduzindo toda uma cultura e continentes inteiros a estereótipos" ofensivos por natureza. Esta redução estereotipada não é culturalmente neutra: é consequência histórica de uma estrutura global racista que se reproduz através de novas tecnologias.
O Contexto Histórico e a Continuidade Colonial
A crise do acesso à água em algumas regiões africanas, frequentemente utilizada como objecto de chacota, não resulta de qualquer inferioridade intrínseca, mas da sabotagem histórica de políticas públicas, da corrupção internacionalizada e do descaso global com os povos empobrecidos. Séculos de pilhagem colonial, seguidos de interferências neocoloniais sistemáticas, criaram as condições estruturais que hoje são cinicamente utilizadas para justificar a inferiorização.
A ironia histórica é evidente: a Europa e outras potências ocidentais construíram a sua riqueza através da exploração dos "corpos e almas" que saquearam ao longo dos séculos, mas hoje utilizam as consequências dessa exploração para justificar a sua suposta superioridade. Esta inversão perversa da causalidade histórica é uma das características mais insidiosas do racismo contemporâneo.
Argumentos Adicionais e Contextualização Académica
1. A Dimensão Psicológica do Racismo Digital
O racismo digital funciona como mecanismo psicológico de gestão da culpa colectiva. Ao inferiorizar os "outros", as sociedades ocidentais evitam confrontar-se com a sua responsabilidade histórica e contemporânea na manutenção das desigualdades globais.
Esta operação psicológica permite que o privilégio seja experienciado como mérito natural, em vez de resultado de processos históricos de violência e exploração. Infelizmente, o azar dos povos africanos é ainda esperar que Deus do Israel que rodeou os judeus com milhões de armas de quase todas espécies, recompense os africanos de mão beijada à prosperidade e paraíso eterno sem guerrear pelos tais direitos pretendidos.
2. A Economia Política da Representação
As redes sociais não são espaços neutros, mas plataformas que amplificam determinadas narrativas em detrimento de outras. A predominância de perspectivas ocidentais nestas plataformas cria um efeito de câmara de eco que normaliza visões racistas, enquanto marginaliza vozes e perspectivas do Sul Global. Esta assimetria representacional reforça estruturalmente o racismo digital.
3. A Instrumentalização da Pobreza
A pobreza e o sofrimento em regiões do Sul Global são sistematicamente instrumentalizados para fins de entretenimento e reafirmação identitária. Esta instrumentalização não é apenas moralmente repugnante, mas politicamente funcional: permite que as audiências ocidentais se sintam superiores sem questionar as estruturas que produzem essas desigualdades.
4. A Violência Epistémica
O racismo digital constitui uma forma de violência epistémica que nega a complexidade, diversidade e riqueza cultural dos povos não-ocidentais. Esta violência opera através da redução de realidades complexas a estereótipos simplistas, impedindo a emergência de narrativas alternativas e contra-hegemónicas.
A Resistência e o Caminho Adiante
O combate ao racismo digital exige uma abordagem multidimensional que inclui a observação dos seguintes aspectos:
Deve-se denunciar sim, sistemáticamente toda tentativa de inferiorizar povos inteiros deve ser combatida com firmeza, sem hesitações ou relativismos. O respeito à diversidade humana é inegociável.
Deve haver uma educação crítica, que é fundamental desenvolver literacia digital crítica que permita às pessoas reconhecer e desconstruir narrativas racistas, mesmo quando disfarçadas de humor ou gratidão.
É preciso que haja alguma regulação consciente nas redes sociais, quando não reguladas por consciência crítica, transformam-se em palcos de humilhação pública onde a ignorância dança de mãos dadas com o preconceito.
Na contra-narrativas é necessário promover activamente narrativas que reconheçam a dignidade, complexidade e contribuições dos povos do Sul Global, contrapondo-se às representações estereotipadas.
Nota final
O racismo digital não é um fenômeno isolado, mas expressão contemporânea de estruturas coloniais que persistem sob novas formas. O seu combate exige não apenas a denúncia de manifestações individuais, mas a desconstrução sistemática das ideologias que as sustentam. O continente africano e outras regiões do Sul Global não são cenários para alimentar complexos de superioridade ocidental, mas casas vivas com culturas milenares, sabedorias profundas e lutas legítimas que merecem respeito e dignidade.
A construção de uma sociedade verdadeiramente justa passa pelo reconhecimento de que as disparidades globais resultam de processos históricos de violência e exploração, não de hierarquias naturais. Só através desta consciência histórica crítica, poderemos superar a colonialidade que perdura e construir relações humanas baseadas na dignidade e no respeito mútuo. Pelo que, seríamos gratos se os africanos que podessem ler este repúdio, fizessem chegar a mensagem à cidadã Larissa Corvetto e ao cidadão Alex no X. Sem mais, saudações.
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