RACISMO DIGITAL E A PERPETUAÇÃO DA COLONIALIDADE
Uma Análise do Fenômeno e Suas Manifestações
As redes sociais contemporâneas têm-se tornado palcos privilegiados para a manifestação de formas renovadas de racismo, particularmente dirigidas contra África e outras regiões do Sul Global. Este fenômeno manifesta-se em diferentes modalidades: desde comentários explicitamente depreciativos que classificam continentes inteiros como "esgoto da terra", até expressões aparentemente mais subtis que celebram o "privilégio" de nascer em determinadas regiões, criando implicitamente hierarquias geográficas e raciais.
O caso paradigmático dos comentários sobre o consumo de água em zonas rurais africanas — onde internautas zombam do sofrimento humano com frases como "Poderíamos ter nascido na África e estarmos bebendo água assim..." — ilustra perfeitamente como a desumanização se disfarça de entretenimento. Simultaneamente, publicações sobre "chances de nascer em cada continente em porcentagem" transformam a gratidão em celebração hierárquica, ancorando o imaginário colonial que posiciona o Ocidente no topo e reduz o resto à condição de "sorte inferior".
A Estrutura Ideológica do Racismo Digital
Este racismo digital não é mera manifestação de ignorância individual, mas expressão sistemática de uma ideologia colonial que perdura há mais de 500 anos. A lógica subjacente opera através da desumanização técnica, onde o uso de percentagens e estatísticas confere uma aparência "científica" à violência simbólica, naturalizando hierarquias raciais sob o manto da objetividade.
A estrutura deste pensamento funciona em três níveis interconectados:
1. Animalização e Inferiorização: O "outro" não-ocidental é sistematicamente reduzido a uma condição sub-humana, digno apenas de piedade ou escárnio, nunca de dignidade. Esta operação simbólica permite que o sofrimento humano seja tratado como piada e que desafios estruturais complexos sejam reduzidos a memes.
2. Naturalização da Desigualdade: As dificuldades enfrentadas por regiões do Sul Global são apresentadas como consequência de uma suposta "essência" inferior, ocultando completamente os processos históricos de pilhagem, exploração colonial, interferência estrangeira e má governação patrocinada por potências que lucram com o caos.
3. Inversão da Causalidade: Os territórios que fornecem os recursos que alimentam as tecnologias, mercados e luxo do "primeiro mundo" — como o cobalto do Congo, o cacau da Costa do Marfim, as plantações indianas ou o gás de Moçambique — são paradoxalmente classificados como "inferiores" pelos mesmos que se beneficiam da sua exploração.
As Consequências Reais do Racismo Online
Este tipo de discurso tem consequências concretas que transcendem o espaço digital. Estudos sobre racismo no futebol demonstram como o racismo online tem crescido exponencialmente, autorizando sectores da sociedade a insultar jogadores negros de forma desumana. A normalização destes discursos nas redes sociais cria um ambiente onde a violência racial se torna socialmente aceitável.
A SOS Racismo já documentou como estes padrões recorrem sistematicamente "a uma versão caricatural... reduzindo toda uma cultura e continentes inteiros a estereótipos" ofensivos por natureza. Esta redução estereotipada não é culturalmente neutra: é consequência histórica de uma estrutura global racista que se reproduz através de novas tecnologias.
O Contexto Histórico e a Continuidade Colonial
A crise do acesso à água em algumas regiões africanas, frequentemente utilizada como objecto de chacota, não resulta de qualquer inferioridade intrínseca, mas da sabotagem histórica de políticas públicas, da corrupção internacionalizada e do descaso global com os povos empobrecidos. Séculos de pilhagem colonial, seguidos de interferências neocoloniais sistemáticas, criaram as condições estruturais que hoje são cinicamente utilizadas para justificar a inferiorização.
A ironia histórica é evidente: a Europa e outras potências ocidentais construíram a sua riqueza através da exploração dos "corpos e almas" que saquearam ao longo dos séculos, mas hoje utilizam as consequências dessa exploração para justificar a sua suposta superioridade. Esta inversão perversa da causalidade histórica é uma das características mais insidiosas do racismo contemporâneo.
Argumentos Adicionais e Contextualização Académica
1. A Dimensão Psicológica do Racismo Digital
O racismo digital funciona como mecanismo psicológico de gestão da culpa colectiva. Ao inferiorizar os "outros", as sociedades ocidentais evitam confrontar-se com a sua responsabilidade histórica e contemporânea na manutenção das desigualdades globais.
Esta operação psicológica permite que o privilégio seja experienciado como mérito natural, em vez de resultado de processos históricos de violência e exploração.
2. A Economia Política da Representação
As redes sociais não são espaços neutros, mas plataformas que amplificam determinadas narrativas em detrimento de outras. A predominância de perspectivas ocidentais nestas plataformas cria um efeito de câmara de eco que normaliza visões racistas, enquanto marginaliza vozes e perspectivas do Sul Global. Esta assimetria representacional reforça estruturalmente o racismo digital.
3. A Instrumentalização da Pobreza
A pobreza e o sofrimento em regiões do Sul Global são sistematicamente instrumentalizados para fins de entretenimento e reafirmação identitária. Esta instrumentalização não é apenas moralmente repugnante, mas politicamente funcional: permite que as audiências ocidentais se sintam superiores sem questionar as estruturas que produzem essas desigualdades.
4. A Violência Epistémica
O racismo digital constitui uma forma de violência epistémica que nega a complexidade, diversidade e riqueza cultural dos povos não-ocidentais. Esta violência opera através da redução de realidades complexas a estereótipos simplistas, impedindo a emergência de narrativas alternativas e contra-hegemónicas.
A Resistência e o Caminho Adiante
O combate ao racismo digital exige uma abordagem multidimensional que inclui a observação dos seguintes aspectos:
Deve-se denunciar sistemáticamente toda tentativa de inferiorizar povos inteiros deve ser combatida com firmeza, sem hesitações ou relativismos. O respeito à diversidade humana é inegociável.
Deve haver uma educação crítica, que é fundamental desenvolver literacia digital crítica que permita às pessoas reconhecer e desconstruir narrativas racistas, mesmo quando disfarçadas de humor ou gratidão.
É preciso que haja alguma regulação consciente nas redes sociais, quando não reguladas por consciência crítica, transformam-se em palcos de humilhação pública onde a ignorância dança de mãos dadas com o preconceito.
Na contra-narrativas é necessário promover activamente narrativas que reconheçam a dignidade, complexidade e contribuições dos povos do Sul Global, contrapondo-se às representações estereotipadas.
Nota final
O racismo digital não é um fenômeno isolado, mas expressão contemporânea de estruturas coloniais que persistem sob novas formas. O seu combate exige não apenas a denúncia de manifestações individuais, mas a desconstrução sistemática das ideologias que as sustentam. O continente africano e outras regiões do Sul Global não são cenários para alimentar complexos de superioridade ocidental, mas casas vivas com culturas milenares, sabedorias profundas e lutas legítimas que merecem respeito e dignidade.
A construção de uma sociedade verdadeiramente justa passa pelo reconhecimento de que as disparidades globais resultam de processos históricos de violência e exploração, não de hierarquias naturais. Só através desta consciência histórica crítica, poderemos superar a colonialidade que perdura e construir relações humanas baseadas na dignidade e no respeito mútuo. Pelo que, seríamos gratos se os africanos que podessem ler este repúdio, fizessem chegar a mensagem à cidadã Larissa Corvetto e ao cidadão Alex no X. Sem mais, saudações.
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