ENTRE A BOTA MILITAR E O ESCUDO POLICIAL
Lições de Moçambique e Nepal Diante dos Protestos e Manifestações/Greves
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O Chefe de Estado-Maior de: Nepal - O general Ashok Raj Sigdel & de Moçambique (Até início de 2025) - Almirante Joaquim Rivas Mangrasse. |
A imagem em anexo, que coloca lado a lado o rosto do comando militar directo e do comando pacífico, diante ainda da actuação policial, traduz de forma simbólica a delicada fronteira entre a guerra e a paz, entre a autoridade do Estado e os limites da repressão. É nesse enquadramento que importa analisar dois cenários recentes: as manifestações em Moçambique em 2024, lideradas por Venâncio Mondlane, e os protestos que abalaram o Nepal em 2025. Ambos os episódios nasceram de crises políticas e sociais profundas, mas a forma como cada Estado mobilizou as suas forças de segurança revela caminhos distintos e carrega lições de governação.
Em Moçambique, os protestos desencadeados por Mondlane surgiram da contestação aos resultados eleitorais e do peso insustentável do custo de vida. A resposta inicial coube à Polícia da República de Moçambique (PRM), que não tardou em usar gás lacrimogéneo, disparos para o ar e cargas policiais para dispersar multidões. Nem o próprio Mondlane escapou, tendo sido alvo de gás junto a jornalistas que apenas cumpriam a sua missão de informar. O saldo foi pesado: feridos entre manifestantes e comunicadores, além de uma crítica internacional contundente, com organizações como a Human Rights Watch a denunciar o uso excessivo da força.
Apesar da gravidade dos acontecimentos, o papel das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) foi contido. O Ministério da Defesa advertiu sobre a possibilidade de intervenção, mas as forças armadas limitaram-se a tarefas subsidiárias: remoção de obstáculos, reforço logístico e prevenção de agravamento do conflito. Essa postura de contenção foi interpretada como uma escolha consciente de evitar confronto direto, preservando o país de um “banho de sangue” temido por muitos. Ao invés de se colocarem como protagonistas da repressão, as FADM mantiveram-se como escudo da soberania, apelando à paz e à manifestação pacífica.
O caso do Nepal, em 2025, seguiu um caminho oposto. Os protestos que culminaram na dissolução do parlamento enfrentaram uma resposta direta das forças armadas. Estas assumiram as ruas, impuseram estado de emergência e recorreram a gás lacrimogéneo, balas de borracha e força física para restabelecer a ordem. A repressão foi militarizada, e a distinção entre defesa nacional e segurança interna praticamente desapareceu.
Comparando os dois cenários, nota-se que Moçambique fez uma escolha política e institucional: deixar a linha da frente nas mãos da polícia, preservando as forças armadas para o plano de apoio. Já o Nepal optou pela intervenção direta do exército, numa lógica de “força total”, que acelerou o restabelecimento da ordem mas deixou feridas políticas e sociais mais profundas.
A reflexão que emerge é clara: se as FADM tivessem seguido o modelo nepalês, o país poderia ter mergulhado num cenário de violência ainda maior, alimentando ressentimentos e prolongando a crise. A contenção militar demonstrada em 2024 não só evitou o pior, como também sinalizou um compromisso — ainda que frágil — com o respeito pelos direitos civis e a separação entre funções da polícia e das forças armadas.
Em última análise, a diferença central está no peso atribuído à força militar como instrumento de governação. No Nepal, as forças armadas foram o braço de ferro do Estado diante da crise. Em Moçambique, ficaram como sombra protetora, deixando o embate direto para a polícia. Essa escolha, embora contestada por uns, pode ser lida como um gesto de prudência e de contenção — algo raro em contextos africanos de contestação política.
A imagem dos dois comandantes que serve de capa para esta análise simboliza essa dualidade: o poder de decidir entre esmagar ou conter, entre transformar as forças armadas em braço da repressão ou preservá-las como reserva da nação. Moçambique e Nepal oferecem duas lições distintas, mas que convergem para a mesma questão: até que ponto os Estados estão dispostos a respeitar o direito à manifestação sem recorrer ao peso da bota militar?
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Rise of the Warrior Cop - mostra como a polícia em vários países foi-se transformando numa força quase militar.
Why Civil Resistance Works - revela por que razão a resistência pacífica consegue, muitas vezes, ser mais eficaz que a luta violenta.
É If We Burn - oferece um panorama global da “década dos protestos” e das suas consequências inesperadas.
Três leituras que dialogam directamente com a realidade de Moçambique e do Nepal — e que ajudam a perceber que, no fundo, cada manifestação é também uma lição de história em movimento.
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