POV: A PERDÃO DOS TABUS TRADICIONAIS EM ÁFRICA
Entre o Progresso/Avanços e o Vazio Cultural
Introdução
Em Moçambique, especialmente no Niassa, onde o povo macua tem raízes profundas, há tradições que moldam a vida desde o nascimento até à morte. Lembro-me bem — como muitas crianças da minha geração, nascidas entre 1994 e 2009 — de ser avisado para não olhar para caixões ou urnas fúnebres. Chamávamos isso de “malavi”, um termo em emakua que se refere a tabus ou proibições ligados às cerimónias de morte.
Acreditava-se que, se uma criança ou adolescente ainda não iniciado visse algo assim, poderia atrair azar para toda a família. Muitas vezes tapávamos o rosto com as mãos ou desviávamos o olhar — e isso não era brincadeira; era parte da cultura, uma forma de proteger os mais novos e manter o equilíbrio espiritual.
Esses tabus, chamados de “Malavi”, faziam parte de um sistema mais amplo de valores que guiava a comunidade, ensinando respeito, hierarquia e conexão com os antepassados. No pensamento macua, uma criança não iniciada é considerada “incompleta” — quase como um “animal pequeno” — até passar pelos ritos que a tornam um adulto social. Por isso, evitava-se o contacto com a morte, pois se acreditava que os espíritos maus poderiam causar desequilíbrios.
Hoje, porém, muitos desses tabus estão a desaparecer, levados pela modernidade, pela educação ocidental e pela globalização. Nós, africanos — especialmente os moçambicanos — perdemos grande parte dessas antigas proibições. Isso traz benefícios, mas também consequências negativas, deixando-nos num certo vazio cultural perante civilizações que mantêm firmes as suas identidades. Vamos analisar ambos os lados, sem filtros, como se estivéssemos à volta da fogueira a partilhar histórias.
As Partes Boas da Perda dos Tabus
Há, sem dúvida, ganhos importantes. A perda de certos tabus abriu portas para o progresso e o conhecimento. Antigamente, uma criança do Niassa podia crescer dominada pelo medo do Malavi, evitando funerais e até conversas sobre a morte. Hoje, com o avanço da educação e da ciência, as crianças aprendem a compreender a morte como um fenómeno natural, sem superstições que as paralisem.
Essa transformação melhora a saúde mental e fortalece a racionalidade. Em Moçambique, onde a educação intercultural se expande, os jovens tornam-se mais abertos, competitivos e preparados para o mundo global, sem o peso de crenças que restringem o desenvolvimento pessoal e intelectual.
Outro ponto positivo é a igualdade social. Os tabus antigos, por vezes, sustentavam discriminações com base em idade, género ou estado de iniciação. Mulheres e crianças não-iniciadas eram excluídas de decisões comunitárias ou de cerimónias importantes. A sua superação, portanto, promove inclusão e participação democrática, princípios que o Estado moçambicano pós-independência tem procurado reforçar.
Além disso, em situações de emergência, como epidemias, a quebra de tabus permite respostas mais rápidas e seguras — por exemplo, com enterros higiénicos que evitam a propagação de doenças.
No fim das contas, essa perda torna-nos mais adaptáveis. Tal como as civilizações europeias e asiáticas evoluíram ao abandonar tabus medievais, também os africanos podem progredir ao combinar o melhor da tradição com o dinamismo do mundo moderno.
As Partes Negativas da Perda dos Tabus
No entanto, nem tudo são flores. A perda dos tabus tradicionais deixa um vazio espiritual e identitário profundo. Sem o Malavi e outros, perdemos parte daquilo que nos definia como macuas, moçambicanos e africanos.
Esses tabus não eram apenas proibições — eram instrumentos pedagógicos e morais, que incutiam respeito pelos mais velhos, pela natureza e pelos ciclos da vida. Hoje, muitos jovens crescem sem referências sólidas, consumindo culturas estrangeiras pela internet ou televisão, e acabam por sentir-se sem raiz, como se a história e a sabedoria dos antepassados se tivessem dissolvido.
Essa erosão cultural gera anomia, um estado de desorientação social. Em Moçambique, com a marginalização das minorias étnicas e a herança de um pós-colonialismo desequilibrado, a perda da coesão comunitária é visível: funerais tornam-se festas, o respeito pelos ritos esvazia-se, e valores como solidariedade e reciprocidade africana enfraquecem.
No Niassa, por exemplo, os ritos de iniciação transmitiam educação sexual, higiene, responsabilidade social e espiritualidade. Sem esses espaços simbólicos, muitos adolescentes enfrentam gravidezes precoces, desorientação moral e rupturas identitárias. A consequência é clara: mais pobreza, desigualdade e desagregação familiar.
Vivemos, portanto, numa era de mistura cultural sem enraizamento, o que nos torna vulneráveis a influências externas que não respeitam nem valorizam o nosso património espiritual e social.
enfim, a perda de tabus como o Malavi tem dois lados: liberta-nos para o mundo moderno, mas rouba-nos a alma africana.
O desafio, hoje, é equilibrar tradição e modernidade — resgatar o que há de bom nas nossas crenças e reinterpretá-lo à luz da ciência, da educação e dos direitos humanos. É possível criar uma educação intercultural que una o conhecimento ancestral e o pensamento crítico moderno.
Só assim Moçambique e África poderão avançar sem perder o que os torna únicos.
E, no fim, fica a pergunta essencial:
O progresso vale a pena se custar a nossa essência?
A resposta está em nós — nas nossas comunidades, nas nossas memórias e na coragem de preservar o que o tempo ainda não apagou.
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