A DITADURA DA BELEZA
Um vídeo curto, uma imagem fixa que dói mais que mil discursos. Num muro amarelo e vermelho, três retratos alinhados: Armando Guebuza à esquerda, Filipe Nyusi ao centro, Daniel Francisco Chapo à direita, o terceiro e último da fila. As crianças não se enganam. Ignoram completamente as duas primeiras figuras e concentram toda a fúria na cara do actual Presidente. Pedras, garrafas, chinelos, insultos. Só ele apanha. Como se Guebuza e Nyusi já pertencessem ao passado morto e Chapo fosse o presente vivo que ainda pode (e deve) ser castigado.
A mensagem é cristalina: o ódio não é histórico, é actual. O culpado de hoje tem nome, morada conhecida e mandato em curso.
Não vou repetir aqui a alcunha fácil de “girafa”. Não porque seja ofensiva (em Moçambique sabemos rir de nós próprios), mas porque reduzir Daniel Chapo a uma piada de estatura é exactamente o que o sistema quer: transformar crítica em folclore, revolta em meme, dor em anedota. Chamá-lo de girafa desarma a gravidade do gesto das crianças. E este gesto não merece ser desarmado. Merece ser levado a sério, com o peso que tem.
Porque estas crianças não foram “agitadas” por ninguém. Não há quem diga, nas conversas de WhatsApp e nos comentários do Facebook, que foram os professores que mandaram os miúdos apedrejar o mural, que é vingança por salários atrasados, por horas extras não pagas, por promessas eleitorais traídas. Pode ser. É uma hipótese plausível. O professor, sozinho na sala de aula, tem tempo, autoridade moral e proximidade para, com meia dúzia de frases bem colocadas, plantar a semente da revolta. E muitos têm motivos de sobra para isso.
Mas também pode não ter sido nenhum professor. Pode ter sido simplesmente a vida. A vida que mostra todos os dias a uma criança de calções rotos que o Presidente aparece na televisão a inaugurar estradas que nunca chegam ao bairro dela; que fala de “combate à pobreza absoluta” enquanto a mãe dela conta meticais para comprar meio quilo de açúcar; que promete “protecção às crianças” no exacto momento em que a polícia dispara balas de borracha (e às vezes de chumbo) contra adolescentes que só queriam votar.
Esses miúdos não precisam de lição extra-curricular para saber quem lhes tira o pão da mesa. Eles vivem isso na pele, todos os dias.
O mais perturbador é a precisão cirúrgica do alvo. Não atiram a Guebuza (já foi, já comeu, já saiu). Não atiram a Nyusi (está de saída, já não manda). Atiram ao que está agora no poder, ao que ainda pode fazer algo e não faz, ao que prometeu tudo e, onze meses depois, continua tudo na mesma: raptos, repressão, desemprego, escolas sem carteiras, hospitais sem medicamentos.
Apedrejam o terceiro da fila porque é o terceiro que ainda tem a tempo de ser diferente e escolheu não ser.
Esse é o recado que nenhuma comissão de inquérito, nenhum discurso na Assembleia da República, nenhum comunicado da Presidência consegue apagar: para esta geração, Daniel Francisco Chapo não é apenas mais um presidente da Frelimo. É o último da linhagem que ainda podia ter rompido o ciclo e preferiu continuá-lo.
E enquanto ele aparecer em murais, cartazes, televisão, jornais, essas pedras continuarão a voar. Não porque alguém as mandou atirar. Mas porque a fome, a raiva e a desilusão têm braços curtos o suficiente para alcançar o futuro que lhes roubaram.
As crianças não mentem.
E, pela primeira vez em muito tempo, Moçambique inteiro está a ouvi-las. Veja o vídeo clicando AQUI.
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