A DITADURA DA BELEZA
A imagem é poderosa: uma mulher de costas, curvada sob o peso de sacos cheios de cebolas, alhos e vegetais, vendendo na rua à sombra de um chapéu-de-sol da Coca-Cola. Ela representa milhões de moçambicanos que todos os dias tentam sobreviver com pequenos negócios informais – as mamparas, os vendedores ambulantes, os donos de cantinas e barracas. Muitos dizem: “Não me meto em política, só quero trabalhar e enriquecer a família”. É possível? Ou, como a realidade tem mostrado, mesmo quem tenta ficar “quieto” acaba por chocar com o poder político de forma brutal?
Em países com instituições fortes, o empreendedor até pode tentar evitar a política partidária, mas nunca escapa dela completamente. Licenças, impostos, regulamentações, contratos públicos, acesso a crédito – tudo passa pelo Estado. Quem cresce muito acaba por precisar de lobby, doações eleitorais ou, pelo menos, de não incomodar quem manda.
Mas em regimes autoritários ou híbridos (como classifica a maioria dos países africanos pelo índice da Economist Intelligence Unit), a fronteira desaparece. O Estado não é neutro: é capturado por uma elite político-partidária que vê o sector privado como fonte de renda ou como ameaça. Aí, empreender sem “choques com a política” torna-se quase impossível.
Em muitos países africanos, ser empresário bem-sucedido e independente é perigoso.
- Strive Masiyiwa (Zimbábue): Para lançar a Econet, teve de lutar cinco anos nos tribunais contra o monopólio estatal de Robert Mugabe. Ganhou no Tribunal Constitucional, mas foi obrigado a exilar-se na África do Sul durante uma década. Regressou só depois da queda de Mugabe.
- Aliko Dangote (Nigéria): O homem mais rico de África sobreviveu porque soube jogar o jogo: mantém excelentes relações com todos os governos que passam. Quando tenta ser demasiado independente (como na recente refinaria), enfrenta boicotes, burocracia infernal e ameaças veladas.
- No Quénia, Sudão do Sul, Etiópia ou RD Congo, empresários que crescem sem alinhar com o partido no poder veem contratos cancelados, fábricas queimadas ou são simplesmente raptados.
Em África, o empreendedorismo sem conivência política raramente chega longe. Ou alinhas, ou pagas protecção, ou foges.
Na nossa terra gloriosa - a pérola do Índico, a resposta à pergunta do título é clara: não, não é possível empreender sem choques com a política – e esses choques podem ser fatais.
Nos últimos 12 anos, cerca de 150 empresários foram raptados (dados da Confederação das Associações Económicas de Moçambique – CTA, 2024-2025). Muitos são de origem asiática ou portuguesa, mas também moçambicanos. Em 2024-2025 registaram-se casos quase mensais em Maputo e Matola. A CTA diz que mais de 100 empresários abandonaram o país por medo.
A impunidade é total: a polícia detém executantes, nunca os mandantes. Analistas independentes apontam que parte destes raptos serve para extorquir, mas outra parte é mensagem política: “Não cresças demais sem partilhar com quem manda”.
Como denunciaram jovens empreendedores em 2014 (e continua actual): nas províncias, o acesso a microcrédito depende da filiação na FRELIMO. “A credibilidade de um jovem é quase nula quando não é da FRELIMO”, disse um participante numa conferência nacional de empreendedorismo. Em 2025, nada mudou.
- Siba-Siba Macuácua (2001): Nomeado para limpar o Banco Austral, descobriu dívidas de altas figuras da FRELIMO. Foi assassinado a tiro. 24 anos depois, ninguém foi condenado.
- **Gilles Cistac (2015)**: Constitucionalista francês naturalizado moçambicano, defendeu a autonomia provincial (posição da Renamo). Morto a tiro em Maputo.
- Elvino Dias e Paulo Guambe (2024): Advogado de Venâncio Mondlane e mandatário do PODEMOS, fuzilados dentro de um carro após as eleições contestadas.
Jornalistas, observadores eleitorais e activistas também morrem: mais de 300 mortos nos protestos pós-eleitorais de 2024, segundo organizações independentes.
Mesmo quem não é “político” acaba político”. Basta ser bem-sucedido e não pagar a “taxa revolucionária” (oficial ou oficiosa).
Essa é a ilusão que muitos repetem: “Vivo sem política e enriqueço mais”. Em Moçambique isso só funciona enquanto fores pequeno e invisível. No dia em que a tua barraca cresce, precisas de licença, de terreno, de crédito, de protecção policial… e aí entras no radar.
A mulher da fotografia talvez consiga vender os seus alhos e cebolas sem problemas graves hoje. Mas se amanhã quiser abrir uma loja maior, importar contentores, contratar 20 pessoas? Aí começa o calvário: inspectores, multas arbitrárias, “parcerias” forçadas com filhos de generais, ou pior.
Em Moçambique, como na maior parte de África, a política não é uma opção – é o ambiente onde respiramos. Quem tenta ignorá-la acaba por sufocar.
É possível enriquecer “sem política”? Sim, se aceitares ser cúmplice do sistema, pagar a tua parte e calar a boca.
É possível enriquecer e manter a dignidade, sem medo de ser raptado, preso ou assassinado? Só quando o país tiver instituições fortes, justiça independente e alternância real de poder.
Até lá, a imagem daquela vendedora ambulante continuará a ser o retrato mais honesto do empreendedorismo moçambicano: carrega o peso sozinha, de costas para o poder, rezando para que ninguém repare nela.
Mas um dia, alguém repara sempre.
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