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COISAS QUE NUNCA ME ENSINARAM: OUTRO LADO DO CAOS DAS GUERRAS
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As Crianças “Salvas” – Entre a Evacuação, o Rapto e a Esperança de Uma Nova Vida
Em todas as guerras, o pior não são só as bombas ou as balas. O pior é o que acontece com os mais pequenos, os inocentes que não escolheram lado nenhum. Quando o mundo desaba, adultos tomam decisões desesperadas: “Levo o meu filho daqui antes que seja tarde”. Às vezes sai bem. Às vezes sai mal. Às vezes fica um vazio que dura para sempre.
A história está cheia de momentos em que crianças foram tiradas de zonas de conflito e levadas para países “de paz”. Uns chamam a isso evacuação humanitária. Outros chamam sequestro. Outros ainda dizem que foi salvação. A verdade é que quase nunca é preto ou branco.
Vietname, 1975 – Operation Babylift
Nos últimos dias da guerra, com Saigon a cair, os Estados Unidos organizaram voos para tirar mais de 3.300 crianças, quase todas bebés e órfãos. O objectivo: salvá-las do avanço comunista. Muitos pais, em pânico, entregaram os filhos pensando que era a única forma de eles sobreviverem.
Mas nem tudo era órfão. Houve crianças com pais vivos, separadas no caos. Documentos falsos, papéis perdidos, famílias que nunca mais se encontraram. Alguns adoptados cresceram felizes nos EUA, Austrália ou França. Outros passaram décadas à procura da mãe ou do pai que os tinham “entregue para salvar”. Hoje muitos dizem: “A minha mãe deu-me para eu viver”. Mas outros sentem que foram roubados numa operação de propaganda para os EUA ficarem bem na fotografia no fim de uma guerra perdida.
Cuba, 1960-1962 – Operation Pedro Pan
Mais de 14.000 crianças cubanas, entre os 6 e os 18 anos, voaram sozinhas para Miami. Os pais ouviam rumores (muitos espalhados pela CIA) de que Fidel Castro ia tirar a “pátria-potestade” e mandar as crianças para campos de reeducação na União Soviética. Em pânico, assinaram papéis e puseram os filhos em aviões.
Metade foi para famílias cubanas exiladas. A outra metade ficou em campos, orfanatos ou lares de acolhimento nos EUA. Quando os voos pararam com a Crise dos Mísseis, milhares de pais ficaram presos em Cuba. Alguns conseguiram sair anos depois. Outros nunca mais viram os filhos. Hoje os “Pedro Pan” são médicos, professores, empresários… mas muitos carregam uma ferida: “Os meus pais sacrificaram tudo por mim, mas eu cresci sem eles”.
Coreia, depois de 1953
Milhares de crianças mestiças (filhos de soldados americanos e mulheres coreanas) foram enviadas para adopção nos EUA. Chamavam-lhes “órfãos da guerra”. Muitas tinham família viva, mas a vergonha social na Coreia era enorme. Agências como a Holt International levaram-nas para “uma vida melhor”. Algumas famílias adoptivas foram maravilhosas. Outras não. Muitos cresceram sem saber a língua materna nem a cultura. Hoje procuram raízes e perguntam: foi salvação ou apagaram metade da minha identidade?
Moçambique – Da guerra civil à insurgência em Cabo Delgado
Na guerra civil (1977-1992), segundo os historiadores da Frelimo, a Renamo raptava milhares de rapazes para soldados. Muitos tinham 10, 12 anos. Quando a paz chegou, comunidades fizeram rituais tradicionais de purificação para os receber de volta. Alguns soldados (de ambos os lados) levaram crianças órfãs ou abandonadas para casa, criaram-nas como filhos, casaram com mães que encontraram nas zonas de conflito. Não era programa oficial, era sobrevivência. Alguns cresceram bem. Outros carregam traumas.
Hoje em Cabo Delgado, com o terrorismo desde 2017, a história repete-se de forma mais sombria: os insurgentes raptam crianças para combater ou para “casar” à força. Mas também há relatos de militares e funcionários que, ao encontrarem órfãos nas aldeias destruídas, os levam para as suas famílias no sul, criam-nos, dão escola. Não é bonito, não é legal, mas na cabeça deles é “salvar”. Às vezes vira família de verdade. Às vezes é só mais uma criança perdida entre mundos.
E o caso ucraniano hoje?
Milhares de crianças foram levadas das zonas ocupadas pela Rússia. Algumas são órfãs. Outras têm pais vivos que as procuram desesperados. Na Rússia mudam-lhes o nome, dão cidadania russa, mandam para campos onde aprendem que a Ucrânia não existe. O Tribunal Penal Internacional já acusou Putin e a comissária das crianças por crime de guerra. Aqui quase ninguém chama “evacuação”. Chamam deportação sistemática para apagar uma identidade nacional.
O que todas estas histórias têm em comum?
- Pais que, no meio do medo, tomam a decisão mais dolorosa da vida: “Vou perder o meu filho para ele ganhar uma hipótese de viver”.
- Países que “recebem” essas crianças com boas intenções… ou com segundas intenções políticas.
- Crianças que crescem com duas identidades, ou com nenhuma. Que amam os pais adoptivos mas sentem um vazio onde deviam estar a mãe e o pai biológicos.
- Uma troca cruel: segurança física em troca de raízes, língua, cultura, família.
Não há heróis nem vilões absolutos. Há guerra. E na guerra, até o acto mais nobre – salvar uma criança – pode deixar cicatrizes que duram gerações.
Talvez um dia o mundo perceba que a melhor forma de salvar crianças não é tirá-las do seu povo… mas acabar com as guerras que as obrigam a fugir.
Porque, no fim, toda a criança merece crescer com a mãe a cantar-lhe na língua que nasceu para ouvir.
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