A DITADURA DA BELEZA
Há séculos, a humanidade tem carregado os seus pecados na consciência, nos gestos falhados, nas palavras mal proferidas, nos actos ocultos que a memória insiste em guardar. Hoje, porém, já não é a alma que regista o erro — é o smartphone. Essa pequena máquina reluzente, sempre na palma da mão, converteu-se no mais vasto arquivo moral da era moderna.
Diz-se que “os smartphones são os maiores depósitos dos pecados, actualmente”. A frase pode parecer humorística, mas é mais verdadeira do que ousamos admitir. Porque, se Deus quisesse julgar a humanidade hoje, não precisaria de abrir os livros celestiais. Bastava-lhe exigir:
“Entreguem-me os vossos telefones.”
E, nesse instante, o céu ficaria vazio.
O smartphone tornou-se extensão da identidade, da memória, do desejo e da tentação. Tudo cabe ali:
— vídeos que jamais deveriam ter sido gravados;
— conversas que contradizem o carácter público de cada um;
— fotografias que revelam máscaras privadas;
— áudios que traem intenções;
— documentos escondidos a sete chaves;
— pesquisas que revelam o lado obscuro da curiosidade humana.
Nenhuma igreja, nenhum confessionário, nenhuma instituição religiosa, política ou jurídica acumulou tanta verdade humana como um simples telefone de bolso. É ali que cada pessoa guarda o que não ousa partilhar — não pela sua imoralidade em si, mas pela nudez que representa.
O telefone não mente.
O telefone não esquece.
O telefone não perdoa.
Vivemos numa era contraditória: publicamente moralistas, privadamente libertinos; socialmente indignados, secretamente cúmplices de tudo aquilo que criticamos. As redes sociais fabricam uma imagem purificada, enquanto o smartphone arquiva a verdadeira biografia moral — uma história que ninguém tem coragem de publicar.
A distância entre quem somos e quem exibimos nunca foi tão grande. E quanto maior a distância, maior a ansiedade, a culpa e a sensação de falha existencial.
O smartphone lembra-nos disso todos os dias.
No passado, dizia-se que a tentação sussurrava. Hoje, ela vibra, acende luzes, envia notificações e oferece atalhos para desejos instantâneos. A tentação deixou de ser uma provação espiritual: tornou-se uma funcionalidade do sistema operativo.
Os sete pecados capitais ganharam novo formato:
— Luxúria: em vídeos, chats, fotografias escondidas em pastas disfarçadas.
— Inveja: em timelines que exibem vidas perfeitas e irreais.
— Ganância: em esquemas, golpes e sonhos de dinheiro fácil.
— Soberba: em selfies, filtros e a procura desesperada por validação.
— Gula: no consumo compulsivo de conteúdo, notícias, escândalos.
— Ira: em comentários, ataques digitais, cancelamentos.
— Preguiça: no deslizar infinito do ecrã.
O smartphone é o espelho onde os pecados deixam de ser abstractos e passam a ter forma, data, hora e backup automático.
Imagine o último dia. Não há tronos, nem trovões, nem pergaminhos celestiais. Apenas um pedido simples:
“Desbloqueia o teu telefone.”
Esse seria o maior teste moral da modernidade.
E, provavelmente, o mais devastador.
Porque ninguém se salvaria.
Não porque somos necessariamente maus, mas porque somos humanos — e a tecnologia tornou visível aquilo que antes apenas o íntimo conhecia. Se o pecado sempre existiu, o smartphone apenas o arquivou com melhor resolução.
Mas o smartphone não é apenas condenação. Também pode ser um espaço de cura, de consciência, de reeducação emocional e espiritual. A tecnologia, afinal, não tem moral própria: reflecte a moral de quem a usa.
O problema não está no dispositivo.
Está na humanidade que ele revela.
A grande questão passa a ser:
Estamos preparados para ver-nos como realmente somos?
Porque, no fim, cada smartphone é uma pequena arca onde guardamos as verdades que tememos confessar — e talvez a salvação comece quando assumirmos que nenhum de nós é tão puro quanto a imagem que publica.
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