ATENÇÃO AO GOLPE DISFARÇADO DE BENÇÃO
Em Moçambique, especialmente no Niassa, onde o povo macua tem raízes profundas, há tradições que moldam a vida desde o nascimento até à morte, lembro-me bem — como muitas crianças da minha geração, nascidas nascidas antes do milénio dois mil— de ser avisado para não olhar para caixões ou urnas fúnebres. Chamávamos isso de “malavi”, um termo em macua ou emakua se preferirem, que se refere a tabus ou proibições ligados às cerimónias de morte e outros casos inusitados ou inapropriados.
Acreditava-se que, se uma criança ou adolescente ainda não iniciado visse algo assim, poderia atrair azar para toda a família. Muitas vezes tapávamos o rosto com as mãos ou desviávamos o olhar — e isso não era brincadeira; era parte da cultura, uma forma de proteger os mais novos e manter o equilíbrio espiritual.
Esses tabus, chamados de “malavi”, faziam parte de um sistema mais amplo de valores que guiava a comunidade, ensinando respeito, hierarquia e conexão com os antepassados. No pensamento macua, uma criança não iniciada é considerada “incompleta” — quase como um “animal pequeno” — até passar pelos ritos que a tornam um adulto social. Por isso, evitava-se o contacto com a morte, pois se acreditava que os espíritos maus poderiam causar desequilíbrios.
Hoje, porém, muitos desses tabus estão a desaparecer, levados pela modernidade, pela educação ocidental e pela globalização. Nós, africanos — especialmente os moçambicanos — perdemos grande parte dessas antigas proibições. Isso traz benefícios, mas também consequências negativas, deixando-nos num certo vazio cultural perante civilizações que mantêm firmes as suas identidades. Vamos analisar ambos os lados, sem filtros, como se estivéssemos à volta da fogueira a partilhar histórias.
Há, sem dúvida, ganhos importantes. A perda de certos tabus abriu portas para o progresso e o conhecimento. Antigamente, uma criança do Niassa podia crescer dominada pelo medo do malavi, evitando funerais e até conversas sobre a morte. Hoje, com o avanço da educação e da ciência, as crianças aprendem a compreender a morte como um fenómeno natural, sem superstições que as paralisem.
Essa transformação melhora a saúde mental e fortalece a racionalidade. Em Moçambique, onde a educação intercultural se expande, os jovens tornam-se mais abertos, competitivos e preparados para o mundo global, sem o peso de crenças que restringem o desenvolvimento pessoal e intelectual.
Outro ponto positivo é a igualdade social. Os tabus antigos, por vezes, sustentavam discriminações com base em idade, género ou estado de iniciação. Mulheres e crianças não-iniciadas eram excluídas de decisões comunitárias ou de cerimónias importantes. A sua superação, portanto, promove inclusão e participação democrática, princípios que o Estado moçambicano pós-independência tem procurado reforçar.
Além disso, em situações de emergência, como epidemias, a quebra de tabus permite respostas mais rápidas e seguras — por exemplo, com enterros higiénicos que evitam a propagação de doenças.
No fim das contas, essa perda torna-nos mais adaptáveis. Tal como as civilizações europeias e asiáticas evoluíram ao abandonar tabus medievais, também os africanos podem progredir ao combinar o melhor da tradição com o dinamismo do mundo moderno.
No entanto, nem tudo são flores. A perda dos tabus tradicionais deixa um vazio espiritual e identitário profundo. Sem o Malavi e outros, perdemos parte daquilo que nos definia como macuas, moçambicanos e africanos.
Esses tabus não eram apenas proibições — eram instrumentos pedagógicos e morais, que incutiam respeito pelos mais velhos, pela natureza e pelos ciclos da vida. Hoje, muitos jovens crescem sem referências sólidas, consumindo culturas estrangeiras pela internet ou televisão, e acabam por sentir-se sem raiz, como se a história e a sabedoria dos antepassados se tivessem dissolvido.
Essa erosão cultural gera anomia, um estado de desorientação social. Em Moçambique, com a marginalização das minorias étnicas e a herança de um pós-colonialismo desequilibrado, a perda da coesão comunitária é visível: funerais tornam-se festas, o respeito pelos ritos esvazia-se, e valores como solidariedade e reciprocidade africana enfraquecem.
No Niassa, por exemplo, os ritos de iniciação transmitiam educação sexual, higiene, responsabilidade social e espiritualidade. Sem esses espaços simbólicos, muitos adolescentes enfrentam gravidezes precoces, desorientação moral e rupturas identitárias. A consequência é clara: mais pobreza, desigualdade e desagregação familiar.
Vivemos, portanto, numa era de mistura cultural sem enraizamento, o que nos torna vulneráveis a influências externas que não respeitam nem valorizam o nosso património espiritual e social.
enfim, a perda de tabus como o Malavi tem dois lados: liberta-nos para o mundo moderno, mas rouba-nos a alma africana.
O desafio, hoje, é equilibrar tradição e modernidade — resgatar o que há de bom nas nossas crenças e reinterpretá-lo à luz da ciência, da educação e dos direitos humanos. É possível criar uma educação intercultural que una o conhecimento ancestral e o pensamento crítico moderno.
Só assim Moçambique e África poderão avançar sem perder o que os torna únicos.
E, no fim, fica a pergunta essencial:
O progresso vale a pena se custar a nossa essência?
A resposta está em nós — nas nossas comunidades, nas nossas memórias e na coragem de preservar o que o tempo ainda não apagou.
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Esses valores tão importantes, hoje, estao a desaparecer. No entanto, ainda há zonas onde isso é prático. Na zona onde eu nasci, em Iapala, Distrito de Ribáuè, Provincia de Nampula, ainda as crianças quando passam próximo de um cemitério ignoram reparar ao caminho tao limpo do cemitério.
ResponderEliminarA que saber ponderar e separar o trigo do joio
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