A MATERNIDADE COMO FONTE DE FELICIDADE VERDADEIRA
Como moçambicano, nascido e criado em cá, confesso que já poucas coisas nas redes sociais me surpreendem. Mas há publicações que ainda conseguem provocar uma mistura amarga de raiva, cansaço e lucidez forçada. Foi exactamente isso que senti ao deparar-me com um post do perfil @TrollFootball, na plataforma X (antigo Twitter).
A publicação exibia o perfil de Ernan Siluane, guarda-redes titular da Selecção Nacional de Moçambique e atleta dos Black Bulls, acompanhado da legenda: “Mozambique’s first choice goalkeeper’s market value”, seguida de um valor absurdo: £145.
O objectivo era claro desde o primeiro segundo: rir, humilhar, reduzir um atleta profissional a um meme barato. Mas o verdadeiro problema não estava apenas na publicação original — estava nos comentários que se seguiram, revelando algo muito mais profundo, estrutural e podre: o racismo colonialista ainda entranhado no futebol global.
Entre os comentários, lia-se que £145 era “o preço de um pneu de carro”, que o jogador podia ser “comprado para jogar no quintal”, que o Barcelona “só o contrataria durante a AFCON”, ou que o Manchester United devia fichá-lo porque “as despesas correm por minha conta”.
Um utilizador foi ainda mais longe: publicou uma imagem de uma festa supostamente “em Moçambique”, retratando pessoas pobres, como se todo um país pudesse ser reduzido a um estereótipo de miséria. Outro achou por bem “corrigir” o valor para ainda menos, como se £145 não fosse já suficientemente insultuoso.
Chamemos as coisas pelo nome: isto não é apenas trolling.
Isto é racismo, mascarado de piada futebolística.
O valor de mercado não mede talento — mede poder.
É preciso dizer isto com clareza. O chamado “valor de mercado”, popularizado por plataformas como o Transfermarkt, não é ciência exacta. É uma estimativa arbitrária, profundamente influenciada por factores como:
Na realidade, o valor estimado de Ernan Siluane ronda os €175 mil, não £145. Mas mesmo esse número diz pouco sobre o seu verdadeiro valor desportivo.
Um guarda-redes da Premier League vale milhões porque o dinheiro circula ali, não porque seja automaticamente melhor do que um guarda-redes africano. Em Moçambique, os salários são baixos, os estádios têm menos câmaras e menos holofotes, mas o talento é o mesmo — ou muitas vezes maior, porque nasce da rua, da escassez, da luta diária.
A Moçambola é uma liga dura, competitiva, onde os Black Bulls se afirmam com mérito. E os Mambas representam um país de mais de 30 milhões de pessoas, que vive e respira futebol com uma paixão que muitos desses comentadores jamais compreenderão.
Faço aqui uma pergunta simples:
quantos desses trolls saberiam quem é Ernan Siluane se ele jogasse num clube europeu médio?
Provavelmente nenhum.
Mas se um jogador europeu desconhecido tiver um valor de mercado baixo, ninguém faz meme. O africano continua a ser o alvo fácil, o “pobre coitado” útil para gargalhadas rápidas.
Isto não é novo. Recorda os tempos coloniais, quando éramos vistos como inferiores, bons apenas para trabalho braçal. Hoje, o sistema mudou de forma, mas não de lógica:
os grandes clubes europeus extraem talento africano barato, inflacionam-no no seu ecossistema e depois vendem-no por fortunas. Mas quando o jogador permanece no seu país, representando a sua selecção, vira piada.
O verdadeiro valor não se mede em libras
Não aceito isso.
E não devemos aceitar.
Ernan Siluane não vale £145.
Vale as defesas que faz com a camisola dos Mambas.
Vale o orgulho de um povo que, apesar das dificuldades, continua a produzir atletas capazes de enfrentar gigantes na CAN e nas eliminatórias africanas.
Vale o exemplo que oferece aos miúdos dos bairros de Maputo que sonham com uma bola gasta e um futuro melhor.
O verdadeiro valor não se mede em libras nem em euros. Mede-se em dignidade, entrega e representação.
Aos trolls digo apenas isto:
venham jogar na Moçambola. Sintam o calor, a pressão, a paixão crua das bancadas. Depois falem.
Moçambique não é même. Moçambique é futebol de verdade. E um dia, o mundo vai reconhecer isso — sem precisar de rir primeiro.
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