Mais um dia nos bairros moçambicanos, algures!
É só mais um dia no bairro, mas cada manhã traz consigo uma série de lições silenciosas.
Acordo com uma agenda apertada, com a voz de um homem sobre o barulho de um objecto plástico que dá golpes para chamar atenção aos moradores, como forma de anunciar alguma reunião marcada para esta manhã, mesmo. Vai variando entre o português e a língua local, passando por quase todos quintais que não tenham alguma vedação e percorrendo os caminhos do bairro.
Ansiosos, vou eu para cumprir o primeiro compromisso do dia. Ao sair, deparo-me com uma armadilha para pássaros montada na saída do meu quintal, aberto e sem barreiras com a vizinhança.
Armadilha para pássaros montada na minha entrada pelos vizinhos. |
Tiro uma foto, achando a ideia curiosa antes de julgar. Tolero, pensando que pode ser obra de crianças, sempre bem-vindas por aqui. Para não atrapalhar, sigo meu caminho.
Por hábito, tento sintonizar a Rádio Moçambique enquanto caminho. Sem o jornal da manhã de sábado, opto por um reprodutor de músicas no celular. A trilha sonora acompanha meus passos e pensamentos.
À frente, uma nuvem de poeira se forma. Imagino moradores varrendo seus pátios, mas logo descubro a verdadeira origem: um cão e um pato trocando mimos, numa cena tão inusitada que até o cão foge do pato. Rio-me da situação inesperada.
Mal percorri metade do caminho e já presenciei tantos episódios nos primeiros 400 metros dos 1990 que preciso trilhar. Logo em seguida, deparo-me com algo que me incomoda profundamente: o fecalismo a céu aberto.
Crianças agrupadas em arbustos, fazendo suas necessidades fora de casa como se fosse um hábito matinal. Questiono-me sobre a falta de instalações sanitárias ou se é uma prática orientada pelos pais.
Seguindo pela terra arenosa, vejo um jovem numa carroça, açoitando burros para aumentar a velocidade. A cena de maus-tratos aos animais me entristece, mas sinto-me impotente para intervir. Esforço-me para substituir esses pensamentos por outros mais positivos.
Ansiando por uma mudança de cenário, atravesso uma área de contrastes: casas tribais, cabanas e edifícios sobre rochas, separados por passagens estreitas. O som de um gerador e uma britadeira quebram o silêncio da manhã. Trabalhadores uniformizados cavam uma fossa na rocha, enquanto penso na ironia:
...onde a terra é arenosa, não há latrinas; onde fazem esforço para cavar, é justamente na rocha.
Observo a abertura de valas que farão parte do sistema de águas residuais da cidade, conectando bairros e até mesmo um hospital provincial. A infraestrutura em desenvolvimento contrasta com as práticas primitivas que testemunhei momentos antes.
Reflectindo sobre tudo o que observei nesta curta caminhada matinal, percebo que cada cena, por mais cotidiana ou bizarra que pareça, conta uma história sobre nossa comunidade. A armadilha para pássaros fala de criatividade e, talvez, necessidade. O cão e o pato demonstram que a natureza pode nos surpreender com momentos de leveza. O fecalismo a céu aberto e a falta de saneamento básico em algumas áreas evidenciam desafios de saúde pública e desenvolvimento que ainda enfrentamos.
A cena do jovem com os burros nos lembra da relação complexa entre humanos e animais, muitas vezes marcada pela exploração. As obras de infraestrutura, por sua vez, simbolizam o progresso e a esperança de um futuro melhor, mesmo que o processo seja lento e trabalhoso.
O que aprendo com tudo isso é que nossa comunidade é um mosaico de contrastes. Tradição e modernidade, desafios e soluções, beleza e rudeza coexistem num espaço relativamente pequeno. Cada passo nessa caminhada me mostra que o desenvolvimento não é linear nem uniforme. É um processo complexo que requer paciência, compreensão e, acima de tudo, um olhar atento para as pequenas mudanças e persistentes desafios do cotidiano.
A grande lição é que, mesmo num simples trajecto matinal, podemos encontrar inspiração para mudança e reflexão sobre nossa responsabilidade individual e colectiva. Cada um de nós tem o poder de contribuir para a evolução do nosso entorno, seja através de pequenas acções diárias ou de um engajamento maior em questões comunitárias.
O bairro, com todas as suas contradições, é um microcosmo de nossa sociedade em transformação. Cabe a nós, seus habitantes, sermos agentes activos dessa mudança, promovendo o respeito mútuo, o cuidado com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
Assim, talvez um dia, o que hoje nos parece extraordinário ou problemático se torne parte de um passado que evoluímos colectivamente.
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