A DIGNIDADE JÁ NÃO CABE ATÉ EM SACOS DE CARVÃO.

Os 03 (três) C's Sem Cobardia Mas de Carvão, Corrupção e Capitalismo

Num país onde até um saco de carvão já é falso, o cidadão comum começa a perceber que viver honestamente é uma escolha que pode custar a própria dignidade. O carvão serve para cozinhar, mas também serve como metáfora perfeita do que resta da ética neste país: uma camada fina de aparência sobre um fundo podre de lixo.

Há dias, um cidadão moçambicano teve a surpresa de encontrar, no interior de um saco de carvão comprado para consumo doméstico, não carvão, mas lixo. O carvão estava apenas por cima — uma pequena camada para encobrir o conteúdo real, como se fosse necessário disfarçar o fracasso de um sistema inteiro com aparência de normalidade. Este episódio não é apenas mais uma fraude comercial entre muitas: é o reflexo cru daquilo que se tornou a sobrevivência no país — um jogo de engano e de esperteza, onde a honestidade virou luxo, e a dignidade já não cabe no saco.

Quando o cidadão precisa mentir para vender, esconder lixo sob carvão, falsificar um saco de esperança para alimentar os seus filhos, é porque o sistema social e económico em que vive já o encurralou. A honestidade não está só fora de moda; está fora do mercado. Um saco de carvão falso é o símbolo mais trágico e eloquente da falência moral de uma nação onde os pobres são forçados a aprender truques para não morrer de fome.

Poucos dias depois, outro episódio — desta vez numa escala maior — voltou a escancarar as contradições desse país virado ao avesso: um camião articulado (popularmente chamado freetline) foi apreendido ao longo da Estrada Nacional Número 1 (EN1), transportando dezenas de sacos de carvão vegetal camuflados, como se se tratasse de uma mercadoria de luxo ou de contrabando delicado. Só que era carvão — o mesmo carvão que falta em muitos bairros periféricos para cozinhar uma refeição simples, mas que enche camiões inteiros rumo à vizinha África do Sul, onde é embalado em pequenos pacotes e vendido em supermercados chiques.

O mais espantoso não é a existência do transporte, nem o destino final. É o silêncio cúmplice da fiscalização. Um camião com tanta carga atravessa distritos e províncias sem ser interpelado? Onde estão os polícias que, quando é um miniautocarro ou viatura ligeira, fazem parar de 50 em 50 quilómetros? Onde está o zelo fiscalizador que nunca falha quando se trata de multar um condutor informal ou pedir "refresco" a um viajante comum? Não estava. Porque os donos dessa mercadoria são intocáveis. Porque o sistema distingue claramente entre o pobre e o barrão. Porque a corrupção deixou de ser desvio — passou a ser método.

E para que não restem dúvidas: o carvão daquele camião, ao que tudo indica, vinha do centro do país, onde ainda há florestas que permitem a produção de carvão vegetal de qualidade. Ou seja, estamos a falar de exploração intensiva de recursos naturais, quase sempre sem controlo ambiental eficaz, para alimentar o lucro privado e um comércio internacional que transforma o que é do povo em riqueza para poucos.

No meio disto tudo, o cidadão comum aprende o que o sistema não ensina nas escolas: neste país, quem segue as regras está sempre atrás. Quem mente, engana e manipula consegue subir. O saco de carvão falso e o camião cheio de carvão clandestino não são casos isolados — são faces do mesmo regime, de um mesmo modelo económico assente na exclusão, na corrupção e no abandono do valor da ética como critério de convivência.

A pergunta que se impõe é: até quando vamos continuar a chamar isto de democracia, se a liberdade de circular ou produzir é apenas real para quem tem dinheiro e protecção política? Até quando vamos tolerar um capitalismo que transforma o carvão em luxo para exportação, enquanto aqui falta lenha nas casas?

A dignidade já não cabe no saco. E o carvão que resta está a arder devagar no fogo da nossa própria impotência colectiva.

Comentários

  1. Assim vai infelizmente o país do pandza. E quando você cidadão pacato e honesto decide comprar uns dois ou três sacos de carvão, é vítima de interrogatório e corre até o risco de lhe concordarem o produto adquirido com dinheiro fruto de grande sacrifício por alegação que é proibido o comércio de carvão. Vê se pode.

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